De bicicleta
Pedalando na minha Terra
Um Pai e um Filho no Caminho de Santiago

Este texto foi originalmente publicado na revista "B - Cultura da Bicicleta", em Dezembro de 2013. Infelizmente esta revista já não existe. Mas, na altura era a melhor e marcou um estilo muito próprio cheio de classe.
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O Caminho de Santiago, na versão francesa são cerca de 800km desde S. Jean Pied de Port (França) até Santiago de Compostela (Espanha). É uma rota marcada com as famosas setas amarelas que passa por locais fabulosos, desde de paisagens em plena Natureza, aos marcos históricos cheios de monumentos. Além disso, esta rota é tão antiga que tem uma mística à sua volta, uma certa magia.
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O meu primeiro contacto com o Camiño foi em 2005. Eu não sabia o que era, nem imaginava. Nesse Verão, durante uns dias de férias na Galiza, é que vi, pela primeira vez, todas aquelas pessoas seguindo o Camiño. Foi uma imagem que ficou registada nas minhas memórias. A intensidade foi tal que no ano seguinte fui para Astorga fazer uma parte do Camiño francês. No ano seguinte fiz o Camiño Primitivo, que sai de Oviedo. Essas duas viagens foram de tal forma ricas em vivências e experiências, que eu não parava de contar histórias em casa.
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Um dos ouvintes mais atento destas narrativas era o meu filho, Zé Pedro. Nessa altura, ele tinha cerca 10/11 anos. Ele ouvia todas estas aventuras de boca aberta. Um dia numa conversa dou por mim a prometer que nós iríamos fazer o Camiño e que seria no Verão de 2012, algo que parecia bem longe. Mas, na realidade o tempo passa e por vezes tão depressa que nem damos conta.
Apesar de ter preparado minimamente a viagem com tempo, a verdade é que quando dei por ela estava na Gare do Oriente à espera do comboio que vai para França, o Sud Express. Até aí estive em modo “sonho”, com as etapas todas definidas, os albergues onde ia dormir, etc.. Nada me incomodava, nem via possíveis problemas. Só nos sonhos é que corre sempre tudo bem, não é? E agora, eu estava ali sentado à espera de um comboio, quando dentro da minha mente houve um estranho “click”. De um momento para o outro, surgiram-me medos que eu desconhecia até então. Mas, para onde é que estou a levar o meu filho? Como será estar tantos dias juntos? E se acontece algum acidente? E será que ele vai gostar disto? É pá, todos os tipos de receios fluíam brutalmente na minha cabeça. Felizmente, sou “acordado” por um berro cheio de entusiasmo: “Pai! O comboio vem aí! Bora lá agarrar nas cenas todas.” Olhei e vi aquele comboio branco e mais baixo do que os outros a chegar. Olhei para a expressão de felicidade do Zé, agarrei nas “cenas todas” com um grande sorriso na cara e senti que esta viagem já não era um sonho. Por um bom bocado de tempo, eu e o meu filho corremos todo o comboio. Queríamos ver tudo e sentir tudo. A janela transformou-se num grande ecrã oferecendo lindas paisagens. Em Coimbra, entrou mais um companheiro de viagem, amigo e colega de escola do meu filho, o Diogo. O nosso entusiasmo foi sempre aumentando. Eu sentia-me tão “puto” quanto eles.

A caminho de S. Jean Pied de Port




Nem demos pelas 15 horas que a viagem durou. De Hendaye a S. Jean Pied de Port fomos em comboios locais. A chegada ao nosso ponto de partida fez-me lembrar o filme “The Way”, do Emilio Estevez. Que tínhamos visto na casa de um nosso amigo umas semanas antes. Só que agora tudo era real. A estação, as pessoas, as ruas,… Sentia-me a reviver o filme.
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Quando estava na fila para obter a credencial perguntaram-me se eu não queria também reservar a dormida também. Essa pergunta deixou-me hesitante. É que eu queria que a nossa primeira dormida fosse o mais confortável possível. E agora, tinha que responder sem saber como era. Raios! Depois lembrei-me de uma regra muito simples: aceita, confia e tudo fica bem.
Tipo magia. E assim fiz, confiei e aceitei a proposta. E ainda bem. Pois, o albergue municipal tinha o conforto necessário para não assustar os rapazes e deu para dormir uma boa 1ª noite.
Ficha Técnica:
1º dia > Casa - S. Jean Pied de Port
Notas de viagem:
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1ª fase > Casa a Setúbal - Automóvel, até à estação de Setúbal;
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2ª fase > Setúbal a Entrecampos - Comboio da Fertagus;
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3ª fase > Entrecampos a Oriente - Comboio urbano da CP;
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4ª fase > Oriente a Hendaye - Comboio Sud Express;
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5ª fase > Hendaye a Bayonne - Comboio;
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6ª fase > Bayonne a S. Jean Pied de Port - Comboio.




E começa a viagem...

Ficha Técnica:
2º dia - S. Jean Pied de Port a Larrosoaña
Distância: 52km
3º dia - Larrosoaña a Puente la Reina
Distância: 42km
4º dia - Puente la Reina a Logroño
Distância: 72km
5º dia - Logroño a Grañón
Distância: 64km
6º dia - Grañón a Burgos
Distância: 68km
7º dia - Burgos a Carrión de los Condes
Distância: 86km
A longa subida pelos Pirenéus acima é tão grande que proporciona momentos de pura introspecção meditativa. Só que todos falavam dela como sendo muito dura, um monstro. E eu não tinha referências e nem imaginava como seria. Eu estava com algum receio. Pois, sabia que não tínhamos treinado nada de especial, por isso era importante fazê-la com calma, não gastar energia desnecessariamente e não deitar tudo a perder. A meio apanhamos um nevoeiro bem denso, criava um cenário bem misterioso e fresco. Confesso que fiquei muito feliz por estar este tempo e não o típico calor de Agosto. E foi tão bom e gratificante subirmos os três ao mesmo tempo, sempre em saudável conversa sobre a vida, o que é realmente importante são as experiências e memórias, entre outras coisas. Ainda, levamos umas duas horas para fazer a subida, mas ver os dois bem fisicamente, sem cansaço, foi bem reconfortante para mim. Agora sim, eu sabia que conseguíamos fazer o camiño. Depois, foi deixar-nos deslumbrar com as belezas surpreendentes que o nevoeiro escondia. Nenhum de nós tinha ainda estado assim tão alto numa serra, ainda por mais em plena cordilheira pirenaica. Estávamos encantados com o poder da paisagem. Enquanto admiro as montanhas sobre as nuvens dou por mim a agradecer. Sim! A agradecer ao nevoeiro, à temperatura, à paisagem… pelo simples facto de poder estar ali, naquele lugar tão belo, com o meu filho.





Costumo afirmar que nada é certo e que tudo pode acontecer. Uma viagem de bicicleta é mesmo assim. No momento em que se menos espera acontece o improvável. Todos nós sabemos que determinados barulhos numa bicicleta não costumam representar nada de bom. E eu já ouvia há algum tempo barulhos na roda traseira do Zé Pedro. Agora, quando vi a roda a rolar toda torta, até fiquei sem palavras. A roda tinha empenado bastante devido a um raio partido. E agora, o que é que podia fazer? Apesar de não saber o que fazer, tentei mostrar calma para não assustá-los. Enquanto tirava o raio explicava que talvez podíamos ter que desistir… É pá! Nem olhei para as caras deles para não ficar ainda mais lixado. Mas, eu não queria desistir. Não iria ser devido a uma roda. O resto desse dia pedalamos mesmo devagar para não estragar mais nada. Para ajudar, os albergues estavam todos cheios. Por fim em Larrosoaña conseguimos pernoitar numa pensão. Tive uma noite nada boa. Preocupava-me a roda, se ela aguentava até Pamplona, se era possível arranjar e claro os €uros…


Na manhã seguinte, ao acordar, vi logo que estávamos todos bem e determinados a conseguir chegar a Pamplona. Após o pequeno-almoço partimos com aquela certeza que iríamos encontrar a solução. A primeira loja que encontramos foi em Burlada. Depois, já em Pamplona depois de passar pela porta de França encontramos outra loja. Mas, também não tinham aqueles tipos de raios. Mas, à terceira foi de vez. A Lasa Cycles foi na nossa esperança e salvação. Após 4 longas horas de desespero a roda voltou a estar “à maneira”. Que felicidade! Só faltou gritar dentro da loja.
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Logo a sair de Pamplona dava para ver uma longa montanha. Apesar do muito calor, a boa disposição estava em alta com a roda “nova”. O Alto del Perdon, com os seus 800m de altitude, mas principalmente a grande quantidade de pedra, do tipo calhau que serviu de teste à roda. Quando chegamos ao cimo estávamos mesmo muito bem-dispostos e otimistas para continuar caminho.
O terceiro dia foi marcado por um dos pontos mais estranhos do camiño, a Fonte do Vinho. O caminho até aí foi bem mais rolante por largos estradões. De vez em quando acompanhávamos outros viajantes, desde de espanhóis a coreanos. Estas saudáveis descobertas fizeram a boa disposição continuar em alta. A chegada à fonte, provar o “tal” vinho e tirar a foto da praxe deu para rir por uns bons quilómetros. Assim, quando demos conta estávamos a chegar a Logroño. Aqui pernoitamos no Albergue Paroquial de Santiago, que funciona na Igreja de Santiago, e tivemos uma noite recheada de cantares ciganos que entravam pela janela a dentro.





No 6º dia de viagem passamos pela bonita vila de Castrojeriz. Os dois rapazolas já estavam famintos e tínhamos a esperança de encontrar algum local para comer qualquer coisa. Ao entrar num pequeno mini mercado, daqueles que vendem tudo, o meu filho e o Diogo resolvem atacar umas pizzas. Mesmo sem irem ao forno foram devoradas com a ajuda de refrigerantes para engolir a “pasta”. Este reforço energético foi muito importante para atacar o Alto de Mostelares, que visto da vila parecia uma terrível parede, que sobe até aos 900 metros de altitude.
O dia da meseta espanhola, aquilo que os outros peregrinos chamavam de “o inferno”. Retas enormes, muitas delas com mais de 10km, quase sempre planas, favorecia um ritmo mais rápido e uma animada conversa. Esta centrava-se muito na coragem física e mental dos peregrinos que viajam a pé. O desafio que deve ser andar por aquelas longas retas e também o muito calor, chegando a passar os 40º. Mesmo as localidades ficam mais distantes umas das outras. Assim, cada vez que passávamos uma fazíamos uma paragem técnica para nos hidratar com Kás Lemon.



No 8º dia ao passar por Astorga, uma bela cidade cheia de história e monumentos, paramos num pequeno snack-bar ali no centro. No exterior tinha uma placa de menus com cafés, sumos ou chás acompanhados com churros. Cada um pediu o seu menu com os respetivos churros. Pouco depois estavam a pedir mais uma travessa de churros. E depois outra! Quando saímos de lá estávamos mesmo cheios, demais para pedalar. Mesmo assim partimos, num ritmo calmo em direção à Cruz de Ferro, uma longa subida até aos 1500m. Estava bastante calor e cada um procurou o seu ritmo. Ou seja, O Zé e o Diogo chegaram bem à minha frente. A Cruz de Ferro é um daqueles locais especiais do camiño. De acordo com a tradição cada um de nós levou uma pedra com uma intenção. Depois de alguns minutos de silêncio cada um deixou lá a sua pedra. E partimos para a grande descida para Molinaseca. Um trilho estreito, por vezes bem inclinado e cheio de pedra. No início fartei-me de avisar para o perigo e para descerem com juízo e cuidado. Quando iniciamos a descida o ritmo aumentou e o juízo foi-se. Aliás, eu é que os vi irem embora. Quando cheguei a Molinaseca lá estavam os dois à minha espera com um estranho sorriso na cara.
Quando chegámos ao albergue ficamos a saber que não tinha lugar para nós. Como prémio tivemos a nossa primeira noite ao relento, sob um lindo céu estrelado e temperatura bem amena.


Uma viagem de bicicleta tão longa, de muitos dias, começa a criar uma nova rotina. Todos os dias são iguais, resume-se a pedalar, comer e dormir. É claro, que a paisagem, os monumentos ou as pessoas vão nos enriquecendo o dia. Mas, no camiño existem etapas que nos põem à prova, não só a resistência física, mas principalmente a mental. São momentos de alguma tensão. Nem sempre é fácil estar com boa disposição o tempo todo. Então, o melhor mesmo é deixar cada um andar no seu ritmo. Ficar só por uns momentos, por uns quilómetros. E depois, mais tarde voltar a agrupar com um renovado sorriso.
O Camiño de Santiago junta imensa gente, desde de portugueses até coreanos. É bom poder comunicar, por vezes só com gestos, com pessoas tão diferentes. O melhor ainda é poder ver os dois rapazes a falarem, a comunicarem com os mais diferentes peregrinos. Poder ver esta autonomia nos relacionamentos sociais… Os moços estão mesmo a ficar uns homenzinhos.


Ficha Técnica:
8º dia - Carrión de los Condes a León
Distância: 97km
9º dia - León a Molinaseca
Distância: 97km
10º dia - Molinaseca a Vila Franca de Bierzo
Distância: 32km
11º dia - Vila Franca de Bierzo a Portomarin
Distância: 100km
12º dia - Portomarin a Monte Gozo
Distância: 87km
13º dia - Monte Gozo a Santiago de Compostela
Distância: 5km
14º dia - Regresso a casa
Nota: Viemos de comboio, autocarro e automóvel


Voltando ao bom e verdadeiro lema de que numa viagem tudo pode acontecer, sem aviso prévio, nem plano. No penúltimo dia, a pouco mais de 30kms do Monte Gozo, eu sou surpreendido por uma avaria no meu cubo traseiro. Por muito que pedalasse o cubo não “engatava” e eu não saia do lugar. Por momentos, tive completamente destroçado, desiludido. Agora mesmo no final é que isto me acontecia. Estava mesmo zangado! Eu não sabia como havia de sair dali, quanto mais levar os rapazes até ao final.
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Enquanto, eu imaginava uma possibilidade com táxi, o Diogo volta-se para mim e diz: “Ponha lá essa corda presa ao guiador que eu puxo!” Eu fiquei sem palavras. O meu filho insiste: “Vá lá pai! Tenta lá. Para ver se dá para chegar ao Monte Gozo.” O que eu senti nesse momento. Os moços com a solução e eu a stressar… Lá agarrei na corda e Diogo ainda puxou por algum tempo. Mas, a corda dava uns esticões bem grandes e eu tinha receio de danificar a bicicleta dele (é de carbono).
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Lá estava eu outra vez apeado. Mas, o camiño é mágico e quando confiamos e merecemos acontece alguma coisa inesperada. Nesse preciso momento em que analisava o cubo, tentando compreender o problema, oiço umas vozes diferentes. Num sotaque bem alentejano: “Então amigo, o que se passa?” Como que aparecidos do nada ali estavam três amigos de Portalegre. Depois de dois dedos de conversa, em que eu expliquei o que tinha acontecido, um dos rapazes diz: “Agora não vamos deixar o homem morrer na praia, pois não?” E com este desafio iniciam uma tarefa de “pronto socorro” impressionante. Foi muito boa esta ajuda. Mas, é uma situação bem desconfortável estar ali dependente de outros. Ver o esforço e sem poder fazer nada… Pouco depois, estávamos a chegar ao Monte Gozo. E a etapa estava concluída como por magia. De facto, temos mesmo que confiar e não stressar. Que a solução possível surgirá. Até na vida é assim.



Último dia, ainda tive que recorrer à corda e à ajuda do Diogo para os 5,4km até Santiago de Compostela. Mas, com calma lá chegamos à praça em frente da catedral.
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Todos felizes tiramos as fotos da praxe. Agora faltava a Compostela, o diploma que prova que fizemos o Camiño. Após alguma espera na fila lá recebemos as nossas Compostelas e um monte de histórias e peripécias vividas.
Ainda andamos pelas ruas ouvindo a bonita música das gaitas de foles.
Mas, estávamos tristes. A viagem tinha acabado.
![]() Descida para RoncesvalesFotografia de Diogo Cunha | ![]() ManjarÃnFotografia de Diogo Cunha | ![]() MesetaFotografia de Diogo Cunha |
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